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05 agosto 2007 

Breviário de leituras: Os filhos de Anansi

Os filhos de Anansi, Neil Gaiman

«Às seis da tarde o Charlie Gordo desligou o computador, e desceu os cinco andares de escadas até à rua. Não tinha chovido. Sobre a sua cabeça os estorninhos revolteavam em chilreios: o coro do anoitecer na cidade. Toda a gente estava com pressa de ir a qualquer lado. A maioria, tal como Charlie Gordo, subia a Kingsway rumo à estação do metro de Holborn. Caminhavam de cabeça baixa, e apresentavam o aspecto inconfundível de alguém que apenas quer chegar a casa.
No entanto, havia ali uma pessoa que não seguia rumo onde quer que fosse. Estava ali parada, encarado o Charlie Gordo e os demais passageiros regulares, o casaco de couro a adejar ao vento. Não estava a sorrir.
O Charlie Gordo viu-o ao fundo da rua. Enquanto caminhava na sua direcção, tudo se tornou irreal. O dia derreteu-se, e ele compreendeu de que era que tinha estado todo o dia a tentar recordar-se.
- Olá, Spider - disse, quando chegou à sua beira.
Spider apresentava-se como se albergasse uma tempestade dentro de si. Parecia prestes a chorar. O Charlie Gordo não tinha a certeza. Havia demasiada emoção no seu rosto, na sua pose, de tal forma que as pessoas que passavam na rua desviavam o olhar, envergonhadas.
- Fui até lá - disse ele, com a voz embargada. - Estive com a Sr.ª Higgler. Ela levou-me até à campa. O meu pai morreu, e eu não sabia.
- Ele também era meu pai, Spider - disse o Charlie Gordo. Interrogava-se sobre como pudera ter-se esquecido do Spider, como o pudera descartar tão facilmente como um sonho.
- É certo.
O céu do crepúsculo era atravessado por nuvens de estorninhos que rodopiavam no ar e passavam de telhado para telhado.
Spider estremeceu e endireitou o corpo. Parecia ter tomado uma decisão.
- É que tens mesmo razão. Isto é uma coisa que temos que ser os dois a fazer.
- Exactamente - concordou o Charlie Gordo. Depois perguntou: - Fazer o quê? - Mas o Spider já estava a fazer sinal a um táxi.
- Somos homens com problemas - declarou Spider ao mundo. - O nosso pai já não está connosco. O coração pesa-nos no peito. A dor pousa em nós como pólen na época da febre dos fenos. As trevas são a nossa cruz, e o infortúnio a nossa única companhia.
- Pois, cavalheiros - disse o taxista, bastante animado. - Para onde?
- Para onde os três remédios para as trevas do coração podem ser encontrados - respondeu Spider.
- Talvez pudéssemos comer um caril - sugeriu o Charlie Gordo.
- Existem três coisas, e três coisas apenas, que podem afastar a dor da perenidade e aliviar as agruras da vida - afirmou Spier. - E essas coisas são o vinho, as mulheres e as cantigas.
- O caril também é porreiro - observou o Charlie Gordo, mas ninguém lhe estava a prestar atenção.»
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B.I.

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