Breviário de leituras: Tu ainda não gostas de mim
«Lucinda atirou-se às cordas do seu baixo, começando a canção, e plantou as pernas numa nova posição, de frente para Denise, exigindo a resposta da bateria. Denise respondeu e marcou o ritmo com o pedal duplo. O som brotou, estranho, pré-linguístico, o baixo e a bateria, matéria bruta da própria vida, argumentativa e provocadora, e a cada mudança de desenho um novo arranque até a progressão de acordes recomeçar novamente. Quem precisava de palavras? Quem precisava sequer de guitarras, esses lamechas envaidecidos? Lucinda sentia-se violentamente impenitente. E, quando as guitarras progrediram, não se sentiu nem um pouco mais arrependida. Aceitar o desafio de Lucinda tinha estimulado até o próprio Bedwin, que, com a sua linha principal, confessava agora que a canção sem palavras tinha afinal um motivo melódico.
Denise acelerou sem que ninguém lhe desse atenção.
A coisa que se tinha instalado no lixo ouviu-os. Deixou cair a carcaça da galinha que tinha arrancado do saco de alumínio e ladrou a sua própria canção para a copa das árvores.»
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