«Um jovem vagabundo entra na Loja dos Suicídios. Traz um grande sobretudo sujo apertado por cima de um monte de camisolas de lã esfarrapadas. As calças manchadas caem-lhe pelas pernas abaixo. Os pés embrulhados em sacos do lixo escortanhados, pergunta com uma voz rouca de tosse:
- Queria matar-me, mas não sei se tenho meios para isso. Qual é o mais barato que têm?
Mishima, de camisola cor de ferrugem e decote em V sem mangas por cima de uma camisa azul-petróleo, responde-lhe:
- Quem não tem um tostão sufoca-se com os nossos sacos de compras. São muito resistentes. Olhe, leve também um bocado de fita adesiva para o fechar hermeticamente à volta do pescoço.
- Quanto lhe devo?
- Deixe lá... - sorri, com a boca num ricto, o Sr. Tuvache.
O jovem vadio de dentes podres, debaixo de uma touca chinesa de lã vermelha de onde saem cabelos poeirentos e sujos, lamenta-se:
- Se eu tivesse encontrado mais vezes gente desinteressada como o senhor, não estaria assim... ou se os meus pais fossem assim atenciosos e protectores...
Ao ouvir isto, Mishima zanga-se:
- Pronto!
Mas o sem-abrigo reconhecido insiste, exibindo o saco de compras que lhe deram:
- Para lhe agradecer, vou enfiá-lo no banco ali em frente. Quem passar, vai ler o nome da loja na minha cabeça e assim faço publicidade. Serei uma espécie de homem-sanduiche.
- Isso mesmo... - diz Mishima, cansado, abrindo-lhe a porta e sentindo o frio lá fora. - Saia depressa, que gelo!
Porta fechada, o Sr. Tuvache, febril, cruza os braços e esfrega as mãos na camisa, dos ombros aos cotovelos, para se aquecer. Afasta um pouco as bolsinhas-surpresa que estão na janela perto da caixa, e passa a palma da mão na humidade dos vidros.
Olha para o jovem sem-abrigo lá fora, que chega ao passeio em frente e se senta num banco. Vê-o meter o saco pela cabeça, aconchegar a abertura e colá-la com fita adesiva. Parece um ramo de flores numa garrafa. O ramo começa a mexer-se. O saco hermético enche-se de ar, esvazia-se, enche-se de ar outra vez. O nome da loja abre-se como num balão: Loja dos Suicídios. De pés cruzados, mãos nas algibeiras do pesado sobretudo e cabeça tapada, sufoca e tomba para um lado. Agora pode ler-se na outra face do saco: A sua vida foi um fracasso? Connosco, a sua morte será um sucesso! O rapaz cai no passeio.
Lucrécia aproxima-se do ombro do marido como se deslizasse sobre carris e observa também. Extraordinariamente digno, o porte da sua cabeça num pescoço de pássaro ressuma a nobreza. Por cima do camiseiro de seda vermelha entreaberto, o tom castanho de uma mecha de cabelo na testa dá estilo ao penteado. Dir-se-ia que está inspirada. A boca comprida, algo crispada, abre-se e os olhos sombrios estreitam-se como se visse mal ou muito ao longe diante de si:
- Pelo menos já não tem frio.»
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